Há muitas pessoas que ficam desanimadas com as controvérsias e as polêmicas que existem nos meios intelectuais em que se estuda a Bíblia. Elas acabam por considerar todo estudo mais sério como desnecessário e mesmo como uma barreira à espiritualidade e ao crescimento da igreja. Simpatizamos com pessoas assim, pois realmente existe muito academicismo e intelectualismo árido e infrutífero em muitos círculos acadêmicos ditos evangélicos. Por outro lado, rejeitar essas coisas não vai resolver o problema, pois continuamos diante de um texto antigo, distanciado de nós, escrito em outras línguas e que precisa ser interpretado para poder ser entendido. Alguns dizem: “Vamos deixar de lado essas questões e simplesmente ler a Bíblia como ela é”. Infelizmente, uma abordagem assim não é possível. Não existe leitura e entendimento de um texto sem que haja interpretação, mesmo que ela se processe de maneira inconsciente. O objetivo desta parte introdutória é levantar alguns aspectos da natureza da Bíblia que tornam indispensável um esforço consciente para interpretá-la.
A Bíblia como livro humano.
O fato de que a Bíblia não caiu pronta do céu, mas que foi escrita por diferentes pessoas em diferentes épocas, línguas e lugares, alerta-nos para o que alguns estudiosos têm chamado de distanciamento. O fenômeno do distanciamento aparece em diversas áreas.
Distanciamento temporal.
A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final do século 1º da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em dois milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Na época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade. A história da interpretação das Escrituras visa mostrar como, desde cedo, o leitor das Escrituras procurou condições de transpor esse abismo temporal.
Distanciamento contextual.
Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações, que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a igreja universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que esses livros foram escritos é essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritas visando atender as necessidades de igrejas locais. Não posso entender corretamente o ensinamento do apóstolo sobre o uso do véu pelas mulheres (1Co 11) se não estiver consciente do problema que estava acontecendo na igreja relacionado com a participação das mulheres no culto. Igualmente, 1João toma outra relevância quando fico consciente de que João estava escrevendo contra a influência de uma forma incipiente de Gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando descobrimos que Marcos escreveu para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas – especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas – ganha maior clareza quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas por causa dos seus grandes pecados. A hermenêutica bíblica historicamente sempre buscou transpor as dificuldades criadas pela distância contextual.
Distanciamento cultural.
O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no passado distante, com suas características, cosmovisões, costumes, tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que esta comunicação foi registrada em determinada cultura, da qual preservou traços. Os intérpretes da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distância cultural.
Distanciamento linguístico As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta essas peculiaridades. O conhecimento do paralelismo hebraico certamente ajudou alguns intérpretes da Bíblia ao longo da História a entender melhor os Salmos e os profetas.
Distanciamento autoral Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca dessas passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje desafiando os melhores intérpretes. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o que ele quis dizer com “Cristo foi e pregou aos espíritos em prisão” (1Pe 3.19). Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que ele quis dizer com “o que farão os que se batizam pelos mortos?” (1Co 15.29). Mateus poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus “não terminarão de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt 10.23). Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia por Ciro (de quem não temos registro fora da Bíblia, cf. Dn 1.21; 6.28; 10.1) e por que considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era filho de Nabonido (Dn 5.2). Não endossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar-se a intenção deles. Cremos que esta intenção sobrevive no que escreveram. Mas certamente a ausência do autor faz que a interpretação de textos obscuros seja necessária.
O distanciamento, portanto, tem exigido dos leitores da Bíblia ao longo dos séculos a tarefa de interpretá-la. Interpretar é tentar transpor o distanciamento em suas várias formas, como mencionadas acima, e chegar ao sentido exato do texto. De modo geral, o ponto central da mensagem da Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos, mesmo os que não estão conscientes do distanciamento. A prova disto é que a igreja vem se mantendo viva e ativa ao longo dos séculos, sendo composta em sua quase absoluta maioria por pessoas que não têm treinamento teológico, histórico e linguístico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por outro lado, uma maior exatidão e clareza acerca de todos os aspectos da mensagem bíblica não poderá ser alcançada sem interpretação consciente.
A Bíblia como livro divino O fato de que a Bíblia foi inspirada por Deus, sendo assim a sua Palavra, também deve ser levado em conta por aqueles que desejam interpretá-la corretamente. A divindade e a humanidade das Escrituras devem ser mantidas em equilíbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra, acabamos por cair em alguns daqueles erros hermenêuticos que veremos ao longo da nossa análise da história da interpretação das Escrituras. Este foi o grande problema do método histórico-crítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários à sua origem divina. Ao tratar a Bíblia como qualquer outro livro de religião, deixando de levar em conta sua inspiração e divina autoridade, os estudiosos e professores cristãos, influenciados pelo racionalismo, acabaram por desenvolver um método de interpretação que não aceitava o conceito de revelação, inspiração e providência de Deus. Como resultado, a Bíblia passou a ser vista não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro a judaica e depois a cristã. Continha erros crassos, e seus livros individuais eram trabalhos compostos de retalhos de fontes contraditórias e refletiam mais o pensamento dos que a escreveram do que as realidades históricas e espirituais que pretendiam transmitir. Tal abordagem às Escrituras já se demonstra inadequada e perniciosa para a igreja.
Uma atitude oposta é igualmente perigosa. Muitos movimentos e grupos religiosos esqueceram ao longo da História o fenômeno do distanciamento e encararam a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo. Evidentemente, sendo a Palavra de Deus, precisamos de comunhão com Deus e da iluminação do Espírito para o conhecimento salvador das Escrituras. Porém, a utilização consciente de princípios de interpretação compatíveis com a natureza dela fará que esse conhecimento nos chegue de maneira mais exata e completa. Precisamos ter cuidado, porém, para não cair no erro de pensar que somente aqueles que têm treinamento profissional em princípios de interpretação poderão chegar ao conhecimento da mensagem das Escrituras.
Muitos dos princípios de interpretação bíblicos, praticados no decorrer dos séculos por todos os leitores da Bíblia, são simples, lógicos e evidentes, como, por exemplo, a interpretação de uma palavra à luz do seu contexto. Isto fazemos diariamente, na leitura do jornal, de notícias pela internet e lendo um e-mail. Em certo sentido, ler a Bíblia envolve as mesmas regras que ler essas coisas. A natureza divina da Bíblia, por sua vez, provoca outro tipo de distanciamento, como segue.
Distanciamento natural A distância entre Deus e nós é imensa. Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus. Não impede a possibilidade desse conhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador em si só representa um distanciamento. A distância entre a criatura e o Criador, tão frequentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos também na hermenêutica. Os intérpretes da Bíblia não podem ignorar isso e pensar que bastam ferramentas hermenêuticas corretas para que se entenda a revelação de Deus. Historicamente, muitos desses intérpretes reconheceram a necessidade de transpor essa distância pela iluminação do Espírito.
Distanciamento espiritual O fato de que somos pecadores impõe ainda mais limites à nossa capacidade de interpretação da Bíblia. Todos os intérpretes da Bíblia têm sido e são seres afetados pelo pecado tentando entender os desígnios do Deus puro e santo. A Queda é um conceito espiritual, mas que não pode ser deixado de lado em qualquer sistema interpretativo das Escrituras. Transpor o abismo epistemológico causado pela Queda é certamente o ponto de partida. A regeneração e a conversão são a resposta de Deus a essa condição.
Distanciamento moral É a distância que existe entre intérpretes pecadores e egoístas e a pura e santa Palavra que pretendem esclarecer. A corrupção de nossos corações acaba por introduzir na interpretação das Escrituras motivações incompatíveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a história da igreja mostra como diferentes grupos manipulam as Escrituras para defender, provar e dar autoridade a seus pontos de vista. Certamente existem pessoas sinceras, mas a sinceridade nem sempre evita o equívoco. Não podemos negar que o distanciamento moral acaba nos levando a torcer o sentido das Escrituras, procurando usá-las para nossos fins, nem sempre louváveis.
A Bíblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e ideias, o que mostra que ler e entender imparcialmente a sua mensagem não é tão fácil assim. A Bíblia foi usada pelos protestantes de países colonizadores para justificar a escravidão, usando textos do Antigo e Novo Testamentos que falam da escravidão sem, contudo, aboli-la (Êx 21.2-6). Os seus opositores usaram também a Bíblia para defender as ideias abolicionistas, usando a parábola do bom samaritano e “amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
A Bíblia também foi usada para provar que os judeus deveriam ser perseguidos e que os protestantes brancos são uma raça superior. A Bíblia foi usada para executar as bruxas, para impedir o casamento dos padres, para defender a masturbação, para justificar o aborto e a eutanásia, para regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres cristãs, para prover aceitação e fortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerência de qualquer tipo de bebida alcoólica, para proibir transfusão de sangue, etc. O catálogo é imenso.
Entendendo o lado humano da Bíblia Seria importante perguntar até que ponto o lado humano das Escrituras possibilitou a entrada de erros na mesma. Essa é uma questão bastante controversa e certamente não poderemos abordá-la de maneira exaustiva aqui. Apenas reafirmaremos nossa convicção de que a Bíblia é a Palavra de Deus, verdadeira em tudo que afirma, com algumas qualificações que mencionamos a seguir.
Erros de copistas Ao dizer que a Bíblia é verdadeira em tudo que afirma não estamos negando que erros de copistas se introduziram no longo processo de transmissão da mesma. Seria negar a realidade. A inerrância é um atributo dos autógrafos, ou seja, do texto como originalmente produzido pelos autores inspirados por Deus. Muito embora hoje não tenhamos mais os autógrafos, pela providência divina podemos recuperá-los quase que em sua totalidade por meio da ajuda de ferramentas como a baixa crítica ou a manuscritologia bíblica.
Linguagem de acomodação Também não estamos dizendo que os autores bíblicos receberam conhecimento pleno e onisciente acerca do mundo, ao escreverem. Eles se expressaram nos termos e dentro do conhecimento disponível naquela época, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam do mundo. Assim, eles falam que o sol nasce num lado do céu e se põe no outro, ou ainda mencionam que o sol parou no céu (Josué). No livro de Levítico, se diz que a lebre rumina e que o morcego é uma ave. Sabemos que pelos padrões científicos atuais lebres não ruminam e morcegos não são aves. Os autores bíblicos, entretanto, estavam se expressando mediante a linguagem das aparências, acomodando-se ao conhecimento de sua época. Do ponto de vista do observador o sol de fato gira em torno da terra, todos os animais que mexem com a boca após comer parecem ruminantes e tudo que tem asas e voa parece ave!
Não sabemos tudo Também não estamos dizendo que podemos explicar todas as dificuldades da Bíblia em termos absolutamente satisfatórios. Por exemplo, a harmonia dos evangelhos continua sendo em parte um desafio para autores comprometidos com a inerrância bíblica, pois nem sempre se consegue achar uma explicação absolutamente satisfatória para alguns dos problemas levantados pelas poucas e aparentes discrepâncias entre os evangelhos. Ou ainda, pelas aparentes discrepâncias entre 1 e 2Crônicas e 1 e 2Reis. No entanto, não podemos aceitar soluções que impliquem numa diminuição da autoridade das Escrituras, sugerindo contradições ou erros. É preferível aguardar até que mais informações nos ajudem a achar soluções compatíveis com a natureza da Escritura e sua divina origem.
Traduções não são inerrantes Por último, é importante acrescentar que não estamos dizendo que as traduções da Bíblia são inerrantes. Muito embora possamos ler com confiança a Bíblia em nossa língua, reconhecemos que em muitos casos os tradutores tiveram de tomar decisões relacionadas com a melhor maneira de verter determinado termo ou expressão, e que tais decisões, não sendo inspiradas por Deus, nem sempre foram as corretas.
Conclusão Tudo isso mostra que não é tão fácil assim simplesmente ler a Bíblia e fazer o que ela diz. Por outro lado, não queremos desanimar da possibilidade (muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras, reconhecendo humildemente que nunca poderemos ter uma compreensão exaustiva de todas as suas passagens. Sabendo que a Bíblia vem de Deus, temos ânimo para buscá-lo em oração, suplicando a sua graça e sua iluminação em nossa tarefa como intérpretes. Muitos estudiosos modernos, cansados do método histórico-crítico, têm proposto novos métodos de interpretação que levem em conta o caráter divino das Escrituras. Defendem princípios de interpretação que estejam atentos não somente aos aspectos humanos da Bíblia como literatura religiosa, mas especialmente às implicações da sua divina origem e natureza, bem como da nossa dupla condição de humanos e pecadores. A dupla natureza da Bíblia provoca um distanciamento temporal e espiritual que precisa ser transposto, para que possamos chegar à sua mensagem. Porém, isso não nos isenta de buscar compreender de maneira mais exata e completa a revelação que Deus fez de si mesmo. Com a graça de Deus, o estudo da interpretação da Bíblia feito pela Igreja Cristã e outros grupos ao longo da História pode nos servir de auxílio oportuno para aprender com os erros e acertos dos que vieram antes de nós. Esse é o alvo deste livro.
A linguística e a hermenêutica bíblica: diálogo e desafios para o intérprete do século 21. 257. Introdução. 257. A abordagem linguística e suas tendências hoje.
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